Recife
manhã cedo
acordo pensando em ti
tive medo de ferir-te
tive medo de magoar-te.
Manhã cedo - palavra não dizia
tive medo de ouvir-me
tive medo de olhar-me
tive medo de ferir-me.
Tarde chegando - as ruas atravessando
a Câmara se aproximando
o momento exato chegando
mil lembranças a ti me tomando
no meu silêncio necessário.
Recife, sempre Recife
de ruas de nomes tão doces
Rua da União, que Manuel Bandeira
tinha ¨medo que se chamasse rua Fulano de tal ¨
e que hoje eu temo que venha se chamar
Rua Coronel Fulano de tal.
Rua da Creoulas.
Rua da Auroraa.
Rua da Amizade.
Rua dos Sete Pecados.
Recife sempre.
Teus homens do povo
queimados do sol
gritando nas ruas, ritmadamente,
¨chora menino prá comprar pitomba ¨
e eu tenho lã de barriguda pra ¨trabiceiro ¨.
Doce de banana de goiaba !
Faz tanto tempo !
Para os meninos da mesma rua,
áquele homem que andava apressado
quase correndo - gritando, gritando:
doce de banana e goiaba !
Em cada esquina cada um de nós dizia:
quero banana, doce de banana !
Sorrindo já com a resposta que viria.
Sem parar
sem olhar para trás
sem olhar para o lado
apressado, quase correndo
o homem-brinquedo assim respondia:
¨Só tenho goiaba -
grito banana porque é meu hábito¨.
Doce de banana e goiaba !
Doce de banana e goiaba !
Continuava gritando, andando apressado
sem olhar pra trás
sem olhar para o lado
o nosso homem-brinquedo.
Foi preciso que o tempo passasse
que muitas chuvas chovessem
que muito sol se pusesse
que muitas marés subissem e baixassem
que muitos meninos nascessem
que muitos homens morressem
que muitas madrugadas viessem
que muitas árvores florescessem
que muitas Marias amassem
que muitos campos secassem
que muita dor existesse
que muitos olhos tristes eu visse
para que entendesse
que áquele homem-brinquedo
era o irmão esmagado
era o irmão explorado
era o irmão ofendido
o irmão oprimido
proibido de ser.
Parte do poema - Para sempre Recife do educador Paulo Freire, escrito em fevereiro de 1969, em Santiago do Chile, quando o mesmo estava no exílio.
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